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A Associação Portuguesa para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial dá continuidade ao ciclo "Conversas em torno do PCI", no próximo dia 13 de Março às 18 horas, com a iniciativa designada "O ENTRUDO EM PORTUGAL - O CASO DAS CÈGADAS NO CONCELHO DE LOURES"

pub: 07/03/2025

 


                                                                                        CÈGADAS

Estas manifestações populares de carácter predominantemente irónico, jocoso e satírico que surgem durante o Carnaval são, segundo os dicionários ou enciclopédias, «ajuntamentos de figuras mascaradas, que pelo Carnaval percorriam as ruas, cantando» ou «ajuntamentos de figuras mascaradas que pelo Carnaval percorrem as ruas de Lisboa, cantando e pedindo esmola à imitação dos cegos». Mas a sua definição pode ser mais explicita se recorrermos ao etnomusicólogo José Alberto Sardinha: «Representação dramática, musical e coreográfica, de autoria popular, para mostra pública ao ar livre. Hoje quase caídas em desuso, eram farsas burlescas, pequenos autos populares de conteúdo humorístico ou moralizante, meio ensaiadas, meio improvisadas, representadas na época do entrudo, com enquadramento musical, que percorriam, por essa altura, as cidades, vilas e aldeias. As partes musicais variavam conforme o enredo e o engenho dos autores. Os instrumentos musicais também variavam, mas os textos poéticos eram habitualmente encaixados em músicas já existentes e que eram populares por circularem na tradição oral, ultimamente na rádio e no disco. ( ... ) Justamente pelo facto de fazerem um peditório no final da atuação, à maneira dos grupos musicais de ceguinhos, ganharam estas representações o nome de cègadas. Da fase espontânea, passou-se às cègadas organizadas, de que são conhecidos exemplos provenientes da cidade de Lisboa, com autores também conhecidos e até renomados, essencialmente ligados ao fado, género musical que, na sua modalidade de corrido, serviu, neste último estádio de desenvolvimento, para estas representações dramático-musicais. Ainda persistem alguns exemplos esparsos pelo país, como é o caso de aldeias do concelho de Sesimbra, bem como da Nazaré, onde os grupos de cada bairro e freguesia se apresentam nas sociedades recreativas».1


Para a etnolinguista Maria Micaela Soares, que investigou a cultura saloia no concelho de Cascais, as cègadas «eram composições teatrais que, à imitação das cantigas de cegos, grupos de mascarados interpretaram, depois de representadas nas aldeias de origem, pelos lugarejos em torno, no Domingo Gordo e em Terça-feira de entrudo, até ao alvor da década de Quarenta do século XX. Tratavam, em regra, temas burlescos, mas podiam também integrar pequenos dramas que não deixavam indiferentes os corações aldeãos. Os improvisados atores, que ensaiavam os seus papéis em círculos fechados, muito sigilosos, eram sempre homens, embora desempenhassem figuras femininas, adequando-se o desempenho à compleição física dos comediantes. (...) O acompanhamento musical foi, de início, somente vocálico ou, quando muito, de pífero, corneta, gaita-de-beiços. Mais tarde, já com instrumental dos cavalinhos2 locais. ( ... ) As exibições processavam-se ao ar livre, em sítios centrais, normalmente os largos das igrejas ou as portas das tabernas, sem disporem de qualquer atributo cenográfico. Os atores, sem número fixo, engalanavam-se quanto possível, com trajo harmonizado com os papéis, disfarçando-se, se conveniente, com máscaras. O auditório, sempre muito vultuoso, aglomerava-se em círculo compacto em volta dos atores. ( ... ) As proposições tanto eram glosadas em prosa como em verso, sendo a rima mais generalizada nas cenas cantadas, com trechos a solo e em estribilho uníssono. Algumas eram inteiramente versejadas».3


Com uma duração variável (cerca de meia hora a uma hora), geralmente o seu início consta de uma marcha de abertura (aproveitada para a apresentação da aldeia ou do lugar e dos elementos que compõem o grupo, incluindo o autor da cègada), seguindo-se a cègada propriamente dita, «dividida em três ou quatro partes, declamações (actos), intercaladas por igual número de fados ou cantigas, terminando com a marcha de despedida».4


No tempo da Primeira República, sabe-se que as cègadas não ficaram indiferentes aos temas da atualidade política. No concelho de Sintra «figuras conhecidas (ministros, presidente) ou alegóricas (Zé Povinho, Igualdade, Fraternidade), apresentavam um rol de queixas e de críticas e debatiam a situação vigente. Em S. Pedro de Sintra representou-se a Cegada dos Ministros que seguia este modelo. Em Montelavar representaram-se cègadas de idêntico teor:

             Zé Povinho
Onde estão os benefícios
Que os chefes republicanos
Andaram mais de três anos
A pregar nos comícios?!
Cada vez mais sacrifícios.
Na loja as coisas mais caras,
Estou sendo roubado às claras,
Explorado e comido,
E finalmente metido
Em camisa-de-onze-varas!

 

                 (Josué António Capucho, O Zé Encravado, Montelavar, 1913)



«Com o Estado Novo, as referências à situação política diminuíram. O texto das cegadas podia ser submetido à censura prévia, o que aconteceu com o grupo da Vila Velha e com os de Lourel. (...) Os grupos souberam coexistir com esta forma depressão: ou tinham o cuidado de tornar o texto inofensivo ou os mais ousados arriscavam em introduzir algumas passagens perigosas, contando com o apoio e conivência do público. Havia grupos que revelavam um maior sentido crítico no tratamento dos temas.

 

                 Filho
E há para aí tanto menino
Que não trabalha e come pão fino
E dão à gente os farelos.
Isto um dia tem de acabar.
Não acho isto bem assim
Eu e outros como a mim
Ter que andar a trabalhar
E quase morrer de fome.
E há para aí tanto sujeito
Sempre de corpinho direito
Que não trabalha e de tudo come.
                 Pai
Cala-te não sejas assim
Isto são coisas que a guerra traz
E tu podes crer rapaz
Que isto não pode continuar.
                Filho
Meu pai deixe-me falar
Estou cheio de razão
Fartinho de trabalhar
E a comer tão negro pão.


               (António Manuel Timóteo, Anços, anos 40 séc. XX)

( ... ) Também era indispensável um tocador que acompanhasse os "atores" quando estes deixavam de declamar e entravam a cantar. O diálogo ou era cantado ou declamado. Existia um refrão que era entoado em coro. As partes cantadas eram acompanhadas por músicas conhecidas, geralmente de fados: os músicos tocavam-nas de cor. O tipo de acompanhamento musical variava, as hipóteses eram inúmeras, dependiam do artista ou artistas disponíveis no lugar. Em Anços as cegadas eram acompanhadas à guitarra; Fontanelas por clarinete ou banjo; Lameiras por bandola; Lourel por viola e guitarra; Montelavar por flauta e realejo; Odrinhas por harmónio; S. João das Lampas por acordeão; Tojeira por saxofone e trompete; etc. Por outro lado, para a cègada ter sucesso é fundamental ganhar a recetividade do seu público ou seja, ir ao encontro das suas expetativas neste contexto da quadra carnavalesca. Por exemplo, no caso das cègadas na Nazaré, o escritor Alves Redol considerava mesmo que «ouvir as cegadas é saber o que importa aquela gente». 5 Daí que para interpretar o seu conteúdo geral ou o sentido da graça, seja fundamental conhecer o seu contexto sociocultural. Nesse sentido, e sem se pretender aprofundar esta perspetiva, mas tão só enunciar tal compreensão, podemos começar por mencionar a quadra:


«Nazaré, Nazaré
Não é só de mar e redes
São também muitas enchentes 6

Cá pelas nossas paredes 7 ». 8


Note-se que, contrariamente à atitude masculina, «as mulheres sentam-se na areia da praia viradas de costas para o mar, com a atenção centrada no que ocorre na vila:
"Olhem que estas mulheres estão sempre a dizer mal umas das outras, passam a vida na areia a ver quem passa e ainda põem-se a falar na vida alheia, sabem com quem namora esta e com quem namora aquela"».9

 

A referência ao comportamento social feminino, seja relativamente às chamadas «enchentes», seja sobre o seu, por vezes, muito difundido ascendente no decurso do casamento, são por isso, também, objeto das cègadas nazarenas:

 

               «Cegada Carnavalesca (dois excertos)

Mulheres sentadas
À frente do mar
Dias inteirinhos
Só a criticar.
( ... )
Mas são sempre as mesmas
Que lá estão sentadas
Parecem arraias
Ali alastradas». 10


Na Nazaré, uma cègada intitulada O Falso Morto 11 :


«Bêbado: - Ah, ah, farta-se um homem de trabalhar p´aturar uma mulher daquelas?
Derrete-me à porrada. Se te dou é a mêma coisa. Se eu me vire a ela, ela baldeia-me
logo. Vocês já viram a vida desgraçada qu´eu tanhe? ... Já pinsi em mi matar? Mas eu já
pinsi: pa ver sa nha vida muda, o melhor é fingir que tou morto. Aí vem aquela
desgraçada.
                (Entra a peixeira a cantar)
Peixeira: - Qui é iste?... estou imbasmadas? Ah bêbado! Ah miserável! Ah vadio! Ah
borrachão! Ah vagabundo! Ah repás, tás-me óvir ó quê cângar? Tás-me óvir ó na tas?...
Ah ah ah ah ah!... Atão na sê que já me tou a enorvezar, qu´inda te pise a pés!...
                 (O bêbado mantém-se imóvel)
Peixeira: - Eu já te digo!... Ai que é aquilo?
Ai Santíssimo Sacramento! Querem ver!...
Ai na me digem!... (aproxima-se)
Ai, ai, ah Tonhe!...Ai me (u) amor!? Á Tonho tal malestimado és!
Ai que nem umas meias tem pr´os pés?(sai a gritar)
                (O bêbado levanta-se a esfregar as mãos)
Bêbado: - Ah agora já é Tonhe!... Parece qu´ist(o) está a melhorar.
                (Ela volta à cena a gritar, ele atira-se p´ro chão)
Peixeira: -  Ai quem m´a acode!... Ah Tonhe me(u) amor!...
Bêbado: -  Ai estas mulheres! Agora já sou amor!...
                (Entra a irmã do bêbado)
Peixeira: -  Ah cunhada, o noss(o) Tonh(o)!... Aquela alma santa! Aquele bondoso!...
Irmã -  Largue-me da mão mulher. Agora bondoso. Bondoso inté de mais!... Ai, o me(u)
irmão!... Tanta porradinha apanhou que se ficou! Ai, ai o meu irmão!... Ah Tonhe!...». 12


E como são hoje as cègadas no concelho de Loures?
É isso que se pretende saber nesta nova «Conversa em torno do Património Cultural
Imaterial».

 

 


Grupo de cegantes de Vila Velha (Sintra), 1933.
Foto in SARAIVA, 1993, p.198. 

 

 

Venha saber mais! A participação é gratuita, mas a inscrição é obrigatória, faça aqui

CARTAZ

 

Luís Marques

Veja o Video do Webinar aqui

 

_______________________________________________
1 SARDINHA, J. Alberto (2016). Portal «Terra Mater», Enciclopédia.
2 Pequeno grupo de instrumentistas pertencentes a Sociedades Filarmónicas que se disponibilizavam, de forma independente, para participar nas cègadas.
3 SOARES, Maria Micaela (2013). Saloios de Cascais ? Etnografia e Linguagem, Cascais, C. M. Cascais,
p. 237.
4 «Sesimbra. Campanha de Recuperação das Cegadas». In revista «Movimento Cultural», Ano I, N.º 1,
Abril 1985, AMDS, pp. 64-5.
5 In A Nazaré na Obra de Alves Redol (1980). Nazaré, Museu Etnográfico e Arqueológico Dr. Joaquim
Manso, p. 80.
6 Ralhos entre mulheres.
7 Local onde as mulheres passam parte do seu dia sentadas.
8 FERNANDES, Ana C. D. (1991). A Cegada Nazarena - Análise de um Discurso Crítico, Tese 4.º Ano
Licenciatura em Antropologia, Lisboa, U.N.L/FCSH, p. 58.
9 Ibidem, p. 59.
10 Autoria de António Freire (Gagau), 1968.
11 Deve realçar-se a qualidade do texto que tenta corresponder fielmente ao modo de falar «à Nazaré»,
conforme preconiza a metodologia antropológica.
12 FERNANDES, Op. cit., pp. 72-3.

 

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